domingo, 14 de agosto de 2016

Aula 17/2016 - Epidemia de justiça popular

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A intolerância é a principal causa dos linchamentos que ocorrem em vários estados do Brasil, dizem especialistas em comportamento humano, segurança pública e direito. Para a pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo, Ariadne Natal, os espancamentos são fruto da combinação da percepção de Estado ineficiente, por parte da população, com uma tradição de desrespeito aos direitos humanos.
“De um lado, a percepção de que o Estado não é capaz de prover segurança e justiça. Há uma percepção difusa de uma parte da população de que a impunidade dá a sensação de medo, aumento da criminalidade e a população se vê vulnerável. Então, há a percepção de que o Estado é ausente e ineficiente. Além disso, há uma cultura de desrespeito aos direitos humanos. A gente vive em um país em que há uma cultura de resolução de conflito por meio do emprego da violência”, disse.
Conforme a pesquisadora, as motivações variam, mas partem da ideia de que algumas regras foram quebradas e, com isso, os suspeitos são alvo de ameaças ou de agressões físicas, que podem ter um desfecho fatal. “O linchamento é uma espécie de controle social, é uma espécie de punição ou pena dada à pessoa acusada de cometer um crime, não necessariamente culpada, porque ali não tem uma investigação real, é com base em indícios momentâneos”, disse.
Material da aula

TEXTO 1 – Fato motivador - Ceará registra o 11º caso de linchamento no ano
Subiu para 11 os homicídios no Ceará causados por linchamento. O caso mais recente ocorreu no último fim de semana, no Interior. Um jovem de 20 anos de idade, suspeito de ter assassinado um homem mais velho durante uma briga de bar, acabou sendo perseguido e morto a chutes, socos e pauladas.
O caso aconteceu no Município de Quixeramobim, no sertão Central (a 201Km de Fortaleza).  Tudo começou quando um homem que estava na frente de um clube de forró foi esfaqueado várias vezes. O crime ocorreu no bairro Monteiro de Moraes.
Mesmo esfaqueado ao menos, 10 vezes, Cícero de Lima Roque ainda foi socorrido com vida para o Hospital Regional Doutor Pontes Neto. No entanto, não resistiu e morreu na Emergência.
Logo em seguida, populares que testemunharam o esfaqueamento da vítima passaram a procurar o assassino e acabaram o encontrando numa rua próxima. Ele tentou fugir, mas não conseguiu. Foi espancado até a morte e o corpo ainda arrastado. Tratava-se do jovem Diego Cardoso de Sousa, 21 anos.

TEXTO 2 – A epidemia da justiça popular
As notícias sobre linchamentos proliferam nos jornais locais de todos os Estados brasileiros, mas não constam nas estatísticas. Segundo o Código Penal, o linchamento não é reconhecido como crime e por isso é difícil de calcular quantos atos ocorrem no país. A lista de ações de violência que têm como argumento penalizar crimes de rua é grande. Nos últimos dois meses, pelo menos 10 casos foram noticiados no Brasil. A situação é similar à que acontece na Argentina, que vive uma onda de linchamentos desde meados de março, já levou até mesmo o Papa a se pronunciar sobre a brutalidade dos atos contra ladrões. Apesar da repetição, que prova que não se trata de uma atividade isolada, o Brasil é imbatível em linchamentos, segundo o sociólogo José de Souza Martins, especialista no tema. "Há três anos atrás, eram três ou quatro por semana. Depois das manifestações de junho, passou a uma média de uma tentativa por dia. Hoje estamos a mais de uma tentativa de linchamento diária", explica.
A humilhação pública é o princípio do fim, que muitas vezes não acaba na delegacia, mas sim em morte. Um dos casos mais recentes foi o de um adolescente de 17 anos que morreu ontem em Serra, em Espírito Santo (sudeste do Brasil). O jovem Alailton Ferreira foi espancado por um grupo de pessoas que o agrediu com pedras, pedaços de madeira e ferro. Até o momento em que a polícia chegou ao local, segundo o blog Negro Belchior, da revista Carta Capital, não se sabia ao certo a motivação do espancamento. Especulava-se que o rapaz havia tentado praticar um roubo, abusar de uma criança ou estuprar uma mulher. Mas nada ficou comprovado. Também ontem, em São Francisco, no Maranhão um assaltante foi linchado na rua depois de roubar bolsas, joias e celulares de clientes de uma clínica, segundo o jornal local O Dia. Felizmente, outros vizinhos impediram que a agressão continuasse e ele foi encaminhado à delegacia.

TEXTO 3 – Grupos no Facebook pregam linchamentos e geram polêmica
Quando a vizinha de Cecília Rodriguez se deparou com um assaltante em sua casa em Huancayo, a 300 km de Lima, pediu ajuda. Cecilia a acudiu e, junto com outros moradores, prendeu o ladrão e o manteve detido por duas horas, até a polícia chegar e levá-lo.
Mas, quando soube que o homem havia sido liberado, Cecília resolveu agir. "A partir daquele dia, decidimos espalhar a mensagem na comunidade - da próxima vez que pegarmos um criminoso, não chamaremos a polícia e o puniremos nós mesmos", disse.
Ela criou uma página no Facebook chamada "Chapa tu choro" ("Pegue o seu ladrão"), pedindo que outros seguissem seu exemplo. Sua campanha teve efeito imediato, e mais de cem de páginas semelhantes foram criadas rapidamente.
Muitas dessas páginas têm nomes e mensagens fortes, como "deixe o ladrão paralítico", "corte as mãos dele" e "castre-o". Elas incentivam a violência contra supostos ladrões, sem nenhum julgamento oficial e isento para determinar se são culpados ou inocentes.
Várias destas páginas exibem imagens fortes. Muitos dos grupos são abertos ao público e parecem mostrar cenas de vingança sem pudores.
Espancamentos
Em uma página, um vídeo mostra um homem sendo despido e chicoteado com um cinto. Em outro, um jovem adolescente é espancado até que seu rosto fica desfigurado. Uma terceira gravação mostra uma mulher despida sendo orientada pela rua, com uma cartaz no pescoço: "Eu sou uma ladra".
É impossível ter certeza sobre os detalhes de qualquer um desses incidentes.
"Não imaginava que a campanha teria esse sucesso", diz Cecilia. "Aceito que isso saiu do controle e que alguns estão levando a violência longe demais. Não justifico, mas entendo".
Prender um cidadão suspeito de um crime sem feri-lo é legal no Peru. Feri-lo, no entanto, é ilegal, assim como incentivar a violência pode levar à prisão.
Até agora, nenhum dos organizadores dessas páginas foi preso. A aceitação desse tipo de justiça é alta no Peru, até mais do que em outros países latino-americanos, de acordo com um estudo recente.
No Brasil, houve casos recentes de supostos criminosos que foram "punidos" por moradores. No ano passado, uma mulher foi espancada até a morte no Guarujá (SP) após ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças e acusada de bruxaria.


TEXTO 4 – Intolerância dispara onda de "linchamentos" virtuais
Imagine-se fazendo um comentário polêmico em uma rede social. Um comentário que de alguma forma incomode pessoas que discordam de você. Após fazer o comentário, sua rede social se enche de mensagens de pessoas destilando ódio. Você agora está exposto, recebendo ameaças e sente medo de sair à rua. Esse é um dos exemplos de como os “linchamentos” virtuais acontecem, podendo sair das telas dos computadores e smartphones e provocar tragédias.
Intolerância, impaciência, ódio, rancor, brutalidade. Esses são alguns dos ingredientes utilizados por quem pratica o linchamento. A ideia de fazer justiça com as próprias mãos é uma prática que tem se tornado constante na atualidade, principalmente na América Latina. A decisão de responder com violência a algum acontecimento chocante é razão para que as pessoas se juntem em multidões e pratiquem as agressões.
A psicóloga Marília Zara, especialista em orientação familiar, explica que a união das pessoas em prol do linchamento é a escolha de atitudes primitivas, animalescas que não dão brecha para a empatia (saber se colocar no lugar do outro). “Vão contra não só a vítima, mas à ordem da sociedade que por anos lutou por uma penalização por meio da Justiça e não mais de forma primitiva como nos tempos da Idade Média”, diz Marília. Zara comenta que por causa do mau funcionamento das leis brasileiras o comportamento de quem lincha sinaliza a impaciência e insatisfação do coletivo, ou até mesmo um medo da própria desproteção, uma insegurança devido aos déficits sociais do Brasil.
Levantamento feito pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV), da USP (Universidade de São Paulo), identificou 1.179 linchamentos entre 1980 e 2006 em todo o Brasil. Em entrevista à BBC Brasil em julho deste ano, a pesquisadora Ariadne Natal, doutoranda em Sociologia pela USP, comentou que quem lincha sabe que tem respaldo social para isso no Brasil. Quem está ali linchando sabe que não haverá depoimentos de testemunhas nem maiores investigações ou punições.
Na internet, as marcas psicológicas de quem foi exposto publicamente por causa de alguma opinião também são evidentes. A internet tornou-se território livre para manifestações do pensamento. A divergência de opiniões, porém, quase sempre conduz a reações intolerantes, ainda mais quando os autores do ato se escondem atrás dos chamados perfis falsos, os "fakes".

TEXTO 5 – ‘Quem lincha sabe que tem respaldo social no Brasil’, diz pesquisadora
Pesquisadora defende que há uma série de fatores que permeiam um clima de aceitação e de impunidade em relação a linchamentos, sendo que a atuação da polícia é algo crucial.
O caso de Cleidenilson Pereira da Silva, de 29 anos, espancado e esfaqueado até a morte no início de julho após ser amarrado a um poste em São Luís, no Maranhão, chocou o país. Cercado e atacado por um grupo após uma acusação de roubo, ele foi linchado em plena luz do dia. No Rio de Janeiro, na segunda-feira, Newton Costa Silva também foi espancado até a morte na favela da Rocinha, acusado de tentar matar uma mulher e seus dois filhos.
Em comum, os dois casos trazem à tona a inegável brutalidade dos linchamentos, um fenômeno que tem chamado a atenção no país.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista que ela concedeu à BBC Brasil:
BBC Brasil: Recentemente temos visto linchamentos motivados por assaltos e pequenos delitos, quando, em geral, reações semelhantes tendem a ocorrer após crimes chocantes como estupros de crianças. Há uma nova tendência nesse sentido ocorrendo no Brasil, de banalização da violência e da intolerância?
Ariadne Natal: Diferentemente da Justiça, que fixa penas proporcionais à gravidade do crime, o linchamento não tem a mesma lógica. Um linchamento pode ser motivado por crimes contra a vida, contra os costumes – como estupros -, contra o patrimônio. É difícil indicar se há uma tendência clara de banalização, pois há ocorrências de todos os tipos atualmente. No entanto, nos 589 casos que analisei na região metropolitana de São Paulo, entre 1980 e 2009, os motivos variaram ao longo do tempo.
BBC Brasil: Quem são as pessoas com mais chances de serem linchadas no Brasil?
O perfil da vítima de linchamento é muito similar ao da vítima de homicídio: 95% homens, jovens, a maior parte entre 15 e 30 anos. É raro uma mulher ser vítima de linchamento, embora haja casos famosos, como o do Guarujá. Em geral também são pessoas pobres. A maior parte dos linchamentos ocorre em regiões carentes e periféricas, seja em grandes metrópoles ou cidades do interior, onde o Estado é pouco presente.
BBC Brasil: O linchamento é previsto no Código Penal como crime específico? Torná-lo crime hediondo, por exemplo, poderia coibir sua prática?
O linchamento não é um tipo penal, ou seja, não existe o crime específico de linchamento no Código Penal brasileiro. Um caso de linchamento pode ser registrado como tentativa de homicídio, homicídio ou lesão corporal. Não acredito que o endurecimento penal possa ter um impacto sobre esse fenômeno. Precisamos promover mudanças nas instituições, incluindo as polícias, o Judiciário e sobretudo a sociedade, que considera linchar alguém algo aceitável.
Além disso, é um crime de difícil apuração. Apesar de ocorrer à luz do dia, em público, há um pacto de silêncio após o término. Juntando a isso a característica da Justiça brasileira, que busca individualizar a ação de cada pessoa, por não prever crimes coletivos, os linchamentos tornam-se situações onde a punição é rara.
BBC Brasil: Qual é o papel da polícia nisso? Como policiais tendem a se comportar quando chegam a uma cena de linchamento e como poderiam atuar por mais punição?
O linchamento ocorre a partir de uma suposta acusação inicial. Seja um estupro, um abuso ou um roubo. E, quando a polícia chega, de forma geral, vai lidar com aquela situação inicial. A polícia está ali para investigar o roubo, e o linchamento costuma passar a reboque, sem ser problematizado, sobretudo se a vítima já estiver morta.
Frequentemente o crime menos grave, de roubo ou assalto, vai ser o foco da atenção, e não o de lesão corporal ou até homicídio. A polícia não busca os responsáveis, apesar de estar diante de uma pessoa machucada ou morta, e a sociedade aceita isso como natural. Até mesmo a mídia aceita isso como natural, por não questionar a ação da polícia e a ausência de investigações.
BBC Brasil: Como explicar a atitude da polícia?
A atitude policial diante de um linchamento no Brasil pode variar da prestação de socorro até a participação, omissão e mesmo a incitação. No meu estudo, por exemplo, encontrei um exemplo de linchamento incitado por policiais.
BBC Brasil: Que tipo de participação os policiais tiveram nesse caso de incitamento? Há episódios recentes semelhantes?
Em São Paulo, na década de 1980, um rapaz foi acusado de roubar um taxista. A PM chegou e prendeu esse homem. Ao longo do caminho para a delegacia, os policiais paravam em pontos de táxi e alertavam que estavam com o suspeito. Esses taxistas começaram a seguir o carro da polícia e, quando a viatura chegou à delegacia, foi estacionada a uma distância do prédio policial, deixando o rapaz vulnerável na rua, e ele foi atacado pelos taxistas. Foi um linchamento programado, visivelmente incitado por policiais e documentado pela mídia na época.
No caso recente ocorrido no Maranhão (no início de julho), há imagens que mostram um policial chegando ao local onde o rapaz havia sido linchado. Mas, em vez de tentar socorrer a vítima ou preservar a cena do crime e deter os responsáveis, esse policial saca o celular do bolso e começa a filmar também.
É um cenário contraditório. De um lado, a ação da polícia é importante para impedir que uma tentativa de linchamento acabe em morte. E, ao longo dos anos, a ação da polícia fez com que os linchamentos se tornassem menos letais no país.
Mas a atitude perante os linchadores, no entanto, continua a mesma do passado. Por via de regra não são identificados, detidos, interrogados, e o anonimato coletivo é preservado, sem que ninguém seja nem sequer processado.
BBC Brasil: Com base nessas conclusões, é possível afirmar que o linchamento é um crime praticamente impune no Brasil? Até mesmo com filmagens em casos recentes?
No Brasil o linchamento é um crime de difícil elucidação e há grandes dificuldades para apontar as responsabilidades individuais de cada envolvido. Apesar da omissão e da cultura de aceitação da violência entre as forças policiais, até há tentativas incipientes de investigação. Quanto à impunidade, para ter uma ideia, de 589 casos analisados num período de 30 anos na região metropolitana de São Paulo, apenas um resultou em julgamento. E há muita subnotificação. Dependemos da mídia para saber, já que não há estatísticas oficiais.
Os vídeos podem ajudar, mas estas filmagens costumam ser feitas no calor dos acontecimentos, de forma irregular e muito movimento, e em geral a câmera foca na vítima, e não nos algozes.
No caso do Maranhão, a polícia conseguiu identificar uma facada no coração como a causa da morte do rapaz linchado, então provavelmente vão agora tentar identificar quem desferiu esse golpe, e essa pessoa, se encontrada, poderá responder pela morte do rapaz.
Quem lincha sabe que tem respaldo social para isso no Brasil. Quem está ali linchando sabe que não haverá depoimentos de testemunhas nem maiores investigações ou punições. Do contrário, como explicar alguém que se dispõe a assassinar uma pessoa em praça pública, sem esconder identidade, à luz do dia, sendo até filmada? As ações dos que assistem, da sociedade, da polícia e das instituições dão a essas pessoas a certeza de que estão fazendo algo certo.

ATUALIZANDO...
26/07/2016 21h10 - Atualizado em 26/07/2016 21h11
Justiça do MA decide que 9 pessoas irão a Júri por linchamento de homem
Cleidenilson Pereira da Silva foi morto a socos e pontapés em São Luís.
Réus respondem por homicídio duplamente qualificado.

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